Leitura do Mês
- Vítor Leal Barros

- 10 de out.
- 2 min de leitura

«Usando o sistema do amor, construímos uma estrutura de posse. Os nossos sentimentos viviam dentro desta estrutura, aí tentando replicar-se. Procuravam a familiaridade e a sensação de realidade das coisas. Procuravam a repetição. Alguns destes sentimentos eram aceitáveis o suficiente para os mostrarmos em público; remetíamos os outros para os sótãos e caves.»
in ‘Desfile’, de Rachel Cusk.
Ao fechar ‘Desfile’, percebo que Rachel Cusk não nos entrega personagens, mas variantes de um mesmo experimento sobre poder, género e criação. Há traços nítidos – o G filho e cineasta devorado pela mãe narcisista, o G pintor sustentado pela perfeição doméstica da mulher, a G pintora esmagada pelo marido-ditador, a outra G pintora, genial e execrável, que tenta vestir os códigos masculinos do sucesso – e há um campo difuso, o “nós” que percorre a narrativa, testemunha e cúmplice, espectador e partícipe, que nunca conseguimos delimitar, mas que me chega como voz universal.
O que me fascina, e me deixa inquieto, é que Cusk toca em todas estas questões de poder e género sem moralizar. A moralidade não surge da autora, mas das vozes que se contradizem, se julgam e se aniquilam mutuamente. Betsy, com o seu moralismo vanguardista cortante, ou o dono da quinta, preso numa lógica de autoridade que ele próprio inventou, são peças ou exemplos desse desfile, onde não há saída ética, apenas diagnóstico e posições em fricção. Notável.
O romance alterna com fluidez entre terceira pessoa e um “nós” indeterminado, arrastando-nos por experiências que nunca conseguimos fixar como únicas ou correctas. Cada G é uma faceta da tensão entre autonomia e submissão, criação e destruição, violência e fragilidade. A mulher que leva a pancada, a pintora subjugada, a pintora que imita códigos masculinos – todas nos mostram que a tentativa de liberdade está sempre sujeita às mesmas forças de dominação, mesmo quando invertidas ou distorcidas.
Não há conforto, não há narrativa linear, não há resolução. Apenas o desfile de forças, o movimento contínuo do poder nas relações humanas, exposto com rigor quase clínico. E ainda assim, a escrita é poética, contida, precisa: cada frase tem densidade, cada deslocamento de ponto de vista provoca, cada contraste ilumina o que se reproduz nas entrelinhas do quotidiano e da criação artística.
Cusk não nos pede compaixão nem condenação. Pede atenção, lucidez. Pede que suportemos a evidência de que o poder está em toda a parte, mesmo nos gestos mais íntimos, mesmo na arte, e que a consciência disso não nos liberta, apenas nos coloca diante daquilo que somos, sempre em desfile, sempre em movimento, sempre expostos.
Do melhor que li nos últimos anos.
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