Leitura do Mês
- Vítor Leal Barros

- 30 de out.
- 2 min de leitura

O que me fascina em José Cardoso Pires é o pudor. A contenção. O dizer sem dizer e, ainda assim, sentir-se tudo. Em ‘Lavagante’, esse gesto literário alcança uma forma quase absoluta. É uma novela, ou talvez um protótipo de romance, mas é nessa economia de meios que reside a força do texto. Publicado a partir do manuscrito dos finais da década de 60, para mim, está finalizado: nada falta, nem sobra.
A frase que guardo como lição de estilo (e de vida) é: “Doutra maneira seria o strip-tease que conduz ao amor confessional e o amor confessional é a coisa mais complicada que Deus ao mundo deitou.” Belíssima e cruel, revela a ironia lúcida e o pudor intelectual do autor. O strip-tease simboliza a exposição gratuita, o gesto de se desnudar pelo impulso ou pelo desejo de comover, não pela necessidade de verdade. O amor confessional, pelo contrário, é inevitável, trágico, perigoso. Amar e confessar entrelaçam-se, mas sempre com dignidade e contenção. É a escrita da revelação, que permanece fiel à essência sem ceder ao espectáculo emocional.
O livro observa o mundo com distância. Há uma dimensão social subjacente: a repressão da ditadura, a violência do olhar sobre a mulher, a sombra do machismo. Cecília surge como uma heroína moderna, livre de preconceitos, vista pelos outros como objecto de desejo e inveja. Carrega uma liberdade que se sente idealizada, desejada, mas que o autor, com inteligência, subjuga. Salaviza, o inspector da PIDE, encarna essa força opressora, silenciosa mas inexorável. Cecília é também metáfora da pátria que se sonha livre mas se autoconsome nas teias da ditadura, uma autofagia tão portuguesa de que nem hoje, passados quase sessenta anos, nos livramos.
O médico, Daniel, é outro ponto de observação. Homem corajoso, mas prudente, impede-se de esculpir a mulher ideal (ou a pátria ideal) como um Pigmalião. Este traço, introduzido com delicadeza pelo autor, revela uma consciência viva da diferença entre sonho e realidade. Daniel vive entre fascínio e medo diante desse feminino em potência. É ao mesmo tempo singular e universal. A narrativa vibra no equilíbrio entre desejo, amor e lucidez, mesmo na contenção mais extrema.
O filme de Mário Barroso dramatiza Cecília num destino trágico mais explícito — uma Tosca de Puccini — mas é no livro que sentimos a força da escrita contida, da verdade insinuada, do olhar atento sobre a mulher, a ditadura, o desejo e a liberdade. Cardoso Pires escreve como um príncipe desencantado, mas de um lugar de verdade. Não há exagero, não há espectáculo; apenas a humanidade de quem sabe mais do que o que escreve. E o leitor sente. Sente muito. Na economia e na exactidão das palavras, dos gestos, da acção.
‘Lavagante’ não é apenas um livro: é um exercício de leitura atenta, de escuta, de contemplação. É a prova de que a literatura portuguesa sabia, naquele tempo, falar com pudor e, ao mesmo tempo, desnudar o mundo.
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